Friday, October 07, 2005

Crônica - Buracos negros e café com leite

Entreouvida na rua: "O que isso tem a ver com o meu café com leite?"
Não sei se é uma frase feita comum que só eu não conhecia ou se estava sendo inventada na hora, mas gostei. Tudo, no fim, se resume no que tem e não tem a ver com o nosso café com leite, no que afeta ou não afeta diretamente nossas vidas e nossos hábitos. É uma questão que envolve mais do que a vizinhança próxima. No outro dia ficamos sabendo que o Stephen Hawking voltou atrás na sua teoria sobre os buracos negros, aqueles furos no Universo em que a matéria desaparece. Nem eu nem você entendíamos a teoria, e agora somos obrigados a rever nossa ignorância: os buracos negros não eram nada daquilo que a gente não sabia que eram, são outra coisa que a gente nunca vai entender. Nosso consolo é que nada disto tem a ver com nosso café com leite. Os buracos negros e o nosso café com leite são, mesmo, extremos opostos, a extrema angústia do desconhecido e o extremo conforto do familiar. Não cabem na mesma mesa ou no mesmo cérebro.
Mas, assim como estes extremos não estão tão longe assim - basta o Sol inventar de implodir e iremos todos juntos para o buraco, nós, nosso café com leite, nosso pão com manteiga, nosso santinho da sorte e aquele pulôver favorito -, coisas da vizinhança próxima que parecem não ter nada a ver com nossas vidas têm muito. Você lê essas histórias de fortunas migrando entre os poucos bolsosde sempre, indo para paraísos fiscais e contas ofishór e voltando disfarçadas, o milagre de dinheiro estéril gerando mais dinheiro estéril, a grande einterminável farra do capital no Brasil, e é como se lesse sobre os buracosnegros, algo que não lhe diz respeito, que se passa longe do seu café com leite. E no entanto a moral desse bordel é a moral dominante no país, agora, incrivelmente, mais do que nunca. É a que determina nossa expectativa de vida.Seus apologistas dizem que não há nada de ilegal no turismo sexual que ocapital financeiro faz no Brasil para reproduzir a si mesmo, como se o escândalo não fosse justamente sua legalidade. Também alegam que não háalternativa viável à nossa dependência no capital amoral.
Era o que o StephenHawking dizia da sua teoria para os buracos negros, antes de mudar de idéia. Mas aparentemente as leis da física são mais flexíveis do que a ortodoxia dobordel.
Luis Fernando Verissimo
(Colaboração: Luciane Ayres)

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